terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

As sandálias


Este texto dormia no meu outro canto desde 6-10-06 e porque duma história de amor se trata, arranjei-lhe cama neste outro canto, ao amor destinado.

Continuaria enrolado no sonho, não fora aquela batida persistente.
Abri um olho e accionei os outros sentidos.
Levei tempo a rever-me.
Fazia fresco, era manhã.
Enrolado continuava porém no cobertor, de que perdera o hábito naqueles últimos meses de verão.
O ruído continuava como cão a pedir guarida. Teve de ser.
Separei-me da manta e, em pelota, assomei à janela.
Tudo estava explicado.
O inverno chegara às portas da cidade e, para reconhecimento, mandara avançar os vanguardistas. Ali estava o Outono e os inseparáveis ajudantes: o chuvisco e o vento ligeiro.
As folhas secas, apanhadas de surpresa, esvoaçavam aflitas, sem destino, sacudidas do torpor morno dos últimos dias de Estio.
Aqueles arautos avisavam os humanos da cessação quase imediata da mordomia da estação quente.
Tempo de trocar de fardamentos, o que me levou de imediato à relação próxima dos meus pés e das sandálias. Que seria delas ? Já me compadecia a interrupção daqueles amores.
Não riam. Recorda-me bem aquele dia de inicio de verão quando estaquei junto à pequena montra da sapataria na intenção de encontrar algo mais leve do que as botas de inverno.
E elas, as sandálias, lá estavam, num cantinho, pela humildade ressaltando entre outras, sem arrebiques, simples, pele de mel, macias, a prometer caricias de que os meus pés andavam ávidos e a lançar-lhes olhares gulosos a que eles não foram insensíveis.
Antevi problemas, tentei arredar-me na fuga ao compromisso.
Todavia eles, por si, encaminharam-me à entrada da pequena loja.
Daí a enlaçarem-se, foi um tiro.
Não sei dizer de quem foi a iniciativa, fundiram-se de tal forma, dois em um, só possível num amor de primeira vista.
Cativaram-se e aceito. Elas tinham tudo o que uns pés cansados do percurso podiam desejar, simultaneamente macias e firmes, delicadas mas justas, aceitando as diferenças, completando-se.
Nem sequer discuti na minha plena incapacidade de os separar.
Paguei, deixei as velhas botas e eles vieram felizes na experiência daquele amplexo, estudando-se e entregando-se.
A partir daí. Que posso eu dizer ? Foi a loucura ! Não se desligaram mais, excepção a banhos e dormir que aí opus felina resistência.
Porém de noite os pés viviam agitados pela breve separação e elas, junto à cama, ansiavam pelo raiar do dia e por aquele que era o meu hábito de ir ver o sol a vestir-se.
Novas andanças, novas descobertas, novos enleios.
Como vou eu agora convence-los que tudo acabou ?
Enfim, terá de ser, já venho.
Estou de volta. E venho perplexo... A situação foi aceite, compreenderam que nada é eterno, que foram privilegiados porque tiveram e isso nunca estará perdido e acrescentaram um pedido. Gostariam num dia ou outro de sol, sempre que possível, unirem-se relembrando aquele verão jamais esquecido.
Doçura e amor. Lindo de doer.
E SE OS HOMENS CONSEGUISSEM SER ASSIM ?

2 comentários:

Cris Animal disse...

Notyet.....Como é bom ler o blog dos meus amigos portugueses. Essa colocação de palavras, esse portugês diferente que por si só já é sonoro, bonito. Quando estou em Portugal, sinto uma saudade imensa do meu avô, pq ele nunca perdeu, apesar de tantos anos ee Brasil, essa maneira linda de falar.
Um amor recordado num par de sandálias. Começou ali....rs
Não! O amor sempre começa de uma forma que não sabemos explicar, chega até nós sem ser convidado e se faz presente pór explicações inexistentes. Lindo o seu texto.
Gostoso de ler, remetendo a outras lembranças.
Beijo para vc
...............Cris Animal

Anónimo disse...

Mais uma bela história de amor escondida, à espera de ocasião para poder arejar e de encantar quem teve a sorte de a encontrar.
Sorte a minha...
Não pare de remexer nos papéis e de nos deliciar.