segunda-feira, 31 de maio de 2010

MEIO HOMEM/MEIO CÃO

Nesta simbiose e para ser justo, confesso tentei e sem êxito a metade cão absorvesse algo da do homem e a relutância demonstrada levou-me a crer que grande parte da conduta humana é facilmente descartável sem perda aparente do sentido da vida.

Sem que essa atitude do cão me fosse hostil, esforcei-me na adaptação, até porque aprecio a sua forma de levar a vida pela vida, no aqui e agora, borrifando-se no amanhã, que certamente nem pela cabeça lhe passa, e no implícito futuro que o humano não dispensa nas suas lucubrações.
Tem ele assim a grande vantagem de elidir problemas de angustia de fantasias projectadas não realizadas e na sua maioria não realizáveis.
Consegue também essa coisa mágica de não deixar atulhar o baú das memórias, retendo apenas algumas ou até substituindo-as por reflexos pavlovianos de preferência virados apenas à sua sobrevivência e subsistência, contrariamente ao homem que sedimenta e acumula as suas memórias também na maioria, por excesso ou carência, geradoras das depressões tão em moda, com seu cortejo de amargura, culpa e desespero, conhecidos corrosivos da tal de felicidade que todos buscam e poucos encontram.
Diz o povo que burro velho não aprende e, se o povo tem razão, bem feito estou, pois tarde iniciei esta aprendizagem e terei de acrescentar não ser pêra doce, em face dos seculares maus hábitos de que nos temos vindo a apaparicar.
Ainda pouco faladro e confesso isso não tem sido empecilho na minha aprendizagem, retendo bem pela observação e aqui vou confessar também algumas dificuldades ou fáceis adaptabilidades:


DESAPEGO: Usa por empréstimo, utiliza e larga, pois se, por acaso, o amanhã existir, tudo lá estará e, quem sabe, porventura surgirão outros empréstimos mais aliciantes.
Fórmula simples de eliminar a amargura da posse e sua fastidiosa conservação.
AFECTOS: Fácil a minha adaptação pois já antes ia pelo exagero.
Ternura, carência de afagos, pieguice, avidez ao toque, brincadeiras e outras mariquices, lembrando as crianças, tempo virtuoso do percurso humano.
Os meus pares, adultos circunspectos, olham-me com alguma critica e complacência, o que pouco me incomoda pois o tempo de engolir sapos já lá vai.
ALIMENTOS: Não sei bem como superar esta, mas creio que no final algumas faltas ou cedências terão de ser desculpadas. Não gosto decididamente de comer e ele, além da imposta ração, ou até pela imposição, devora, quiçá em provocação, tudo que lhe convém ao cheiro.
CHEIRO: Ah, cheira e recheira. É fenomenal. Aqui muito desejo adaptar-me porventura por ser um dos sentidos do meu agrado, tanto como o do toque.
Tenho feito algumas tentativas, quando a confiança dos meus pares mo permite.
Todavia felizes não foram e já levei um ou outro tabefe ao ser atribuído ao acto outra intenção, causa e efeito do mau feitio humano.
SEXO: Por aqui estou mal.
Certamente reprovaria se dependesse de exame.
Diria que para ele qualquer cadela lhe serve, se pudesse era actividade quase constante, e, para mim, é agradável memória que, por vezes e com razoável êxito, trago à prática desde que não haja demasiada exigência e sempre, obrigatoriamente, envolta num poderoso ramalhete de indispensáveis e complementares afectos.
MARCAR TERRITÓRIO: Actividade tão usual nele. Faladrou-me ser o seu modo de garantir que não conspurcam locais onde ele já teve alguma felicidade.
Aceito. Todavia continuo a usar o asseio e a intimidade da casa de banho, local onde a parcela de felicidade se limita ao alívio natural do esfíncter e de forma alguma preenche memória futura.
DESCANSO: Bom ! Deitarmo-nos em descontracção muscular, sobre qualquer zona, de preferência relvada e esvaziar o cérebro. Bom… nem tenho palavras.
Nem os meus pares sabem o que perdem quando deambulam nas grandes urbes apressadamente, para cá e para lá, como seres estonteados que não conhecem o rumo e simultaneamente carregam as suas baterias dos tóxicos envolventes.


E assim, esperançado que o cão perdoe a minha inépcia e me dê algum ânimo, lá vou persistindo, aluno satisfeito e assíduo.
O meu esforço é verdadeiro e até talvez consiga merecer ser cão por inteiro
Para já, estou satisfeito e desde que me afaguem com carinho, é garantido, não mordo.
Reparei agora que, contra meu hábito, espalhei-me aqui pelo teclado (outra coisa que o cão tem a sorte de não usar) e já vou nas 799 palavras, o mais extenso dos meus textos (ressalvem o lapso se me enganei, mas não conto outra vez).
Nem já paciência tenho para fazer revisão, pelo que isso sim, perdoem lá qualquer coisinha.
Ia pedir desculpa aos eventuais leitores. Lembrei todavia que conversa de louco a poucos interessa e os poucos, muito poucos, interessados, por esta altura já estarão a dormir.
Mesmo que sim, desejo boa noite e espero tenham tomado a medicação.
Já esquecia: como amo aquele cão, sem duvida isto é de amor, tem de levar flor

1 comentário:

Mariana disse...

Meio-homem Meio-cão, um ser quase inixistente... Mas um ser lindo